Simões, Silva (2021). “A importância do ensino do desenho para a Engenharia Mecânica – Entrevista a José Almacinha”. Gravação e edição de Patrícia Almeida. Apoio técnico de Maria Catarina Silva. Departamento de Mecânica, Faculdade de Engenharia da UP.
Sílvia Simões (SS): Como é que o Desenho continua a ser, ou não, uma ferramenta, um instrumento e uma linguagem de se pensar e de se produzir conhecimento, no campo daqui [da Engenharia], mais propriamente da Engenharia Mecânica?
José Almacinha (JA): Eu acho que [o] é cada vez mais! O grande objetivo do Desenho Técnico é a projeção em suportes bidimensionais de objetos tridimensionais, na tal relação biunívoca entre o objeto que vai dar origem a uma representação e essa representação que só pode resultar daquele objeto. Aqui, nós estamos a falar em objetividade. Isso é fundamental, porque [para] quem concebe, quem fabrica, quem controla e, também, [para] quem concebe para um determinado cliente e precisa de dialogar com ele, o Desenho Técnico tem um papel muito importante nessa comunicação, sendo ao mesmo tempo estruturante na concretização das ideias. Nós queremos formar técnicos que desenvolvam a sua capacidade de pensar e de concretizar de modo gráfico. Isso é fundamental para que depois, quando chegam às empresas, saibam tirar [daí o respetivo] proveito.
Eles [os estudantes] movem-se muito bem nessa parte quantitativa da Matemática [e] da Física, mas cerca de 50 % não tiveram Geometria Descritiva. No início, então, [têm] dificuldades… [Um] faz [uma representação], mas o colega do lado não está a fazer necessariamente igual; quem é que está a fazer bem ou mal? E a gente [diz]: “então, estão a fazer ambos bem, porque isto é uma linguagem de comunicação e, [na] linguagem de comunicação, nós só nos preocupamos em ensinar bem a gramática da linguagem”. Desde que aplique[m] bem as regras gramaticais, pode[m] estar a comunicar com textos diferentes.
SS: Ao nível do Desenho, sente essa perda da manualidade?
JA: Eles [os estudantes] hoje em dia não se sentem muito vocacionados para isso, não é? Quer dizer, estão mais num certo mundo virtual ‒ que dominam fortemente. A gente chama à atenção para que todas essas ferramentas informáticas são um meio e não são um fim. O fim é continuar a fazer objetos ou sistemas cada vez mais sofisticados ‒ porque os meios [o] permitem ‒ mas o core mantém-se.
Isto [um desenho de engenharia] era feito num estirador maior do que estes; isto são os estiradores escolares de 1,20 m, os outros eram para aguentar folhas A0. A ideia nascia em pequenos Esboços, etc. Havia Cálculo e depois ia nascendo… Lá está, é o Desenho a validar o pensamento. Há aqui uma síntese, não é? E, portanto, quando isso [o desenho de engenharia] estava validado, havia um papel vegetal que era cortado à medida, era colocado em cima [do desenho], era preso com a fita apropriada e [o desenho] era passado, com caneta aparo, a tinta-da-China.
SS: Neste momento, a Engenharia Mecânica continua com 3 disciplinas de Desenho, não é?
JA: Hum-hum… Portanto, nós neste momento temos uma cadeira do primeiro ano, [no] primeiro semestre, que é Desenho Técnico; é a linguagem geral. É útil para [a Engenharia] Mecânica, para [a Engenharia] Civil, para Metalurgia e Materiais, para [a Engenharia] Química…
Há uma tendência para se migrar para o 3D, mas estamos numa fase que pode durar cinco, pode durar dez, pode durar vinte [anos] e, quase de certeza, [o desenho de engenharia] nunca acabará nos tempos mais próximos, porque nós temos várias realidades industriais: temos grandes conglomerados que se podem autonomizar muito, mas também temos pequenas empresas que vivem muito da capacidade de fabricar peças individuais. Portanto, há trabalho para isso.
Podemos dizer que 80 % das empresas concebem a 3D, têm acesso muitas vezes ao modelo 3D, mas depois o seu raciocínio, em âmbito de operações de controlo de qualidade, definição de sequências de operações de maquinagem, etc., é feito com base em desenhos 2D, porque objetivamente ainda há muito trabalho nessa interação. Embora o 3D já tenha entrado, porque é evidente que é muito mais fácil conceber a 3D do que conceber assim [em desenho 2D]. É que eles [os estudantes] acham que isto é tudo uma chatice porque não sai à primeira. Quando a malta diz: “Não, isto é um processo iterativo”, eles olham sempre de lado, porque [para eles] as coisas têm de ter um princípio, meio e fim rápidos! A Engenharia não é isso, porque se fosse assim era fácil perceberem…
SS: Estão à espera só de uma solução.
JA: …de uma solução…
Esta questão dos “problemas abertos” é muito importante em termos reais, porque sendo que não há soluções únicas, isto [um exercício de representação ortográfica de uma peça] admite várias soluções, portanto, a mensagem pode ser definida de várias maneiras. Os estudantes normalmente olham para isto [um exercício de leitura de projeções e representação isométrica] e dizem assim: “Mas isto existe na prática?” Não, não existe. Isto tem uma função, isto é o desenvolvimento da lógica mental.
Há aqui [na cadeira de Desenho de Construção Mecânica] muito ferramental que veio do Desenho Técnico, não podia ser de outra maneira, mas agora aplicado não a peças isoladas, mas a sistemas ‒ que é também um core da Engenharia Mecânica. E…, objetivamente, a gente descreve o sistema, a pessoa é obrigada a perceber como…, perceber o contexto, perceber como funciona. Agora em cima disto [do desenho 2D das peças], eles vão fazer a cotagem, vão toleranciar dimensões, macrogeometrias, microgeometrias… O essencial é dar os fundamentos da Matemática, da Física, da Representação Gráfica, porque, depois, a parte tecnológica altera-se rapidamente.
SS: [A parte tecnológica está] sempre a mudar.
JA: Aquilo que é novidade hoje, amanhã, daqui a 5 anos…
SS: [Será] obsoleto.
JA: Já foi ultrapassada por outra… Agora, a matemática que está na base disso, os princípios físicos, a capacidade de transmitir informação geométrica, em simultâneo com a outra informação ‒ isso é que é fundamental ‒ é o que permite a gente adaptar-se aos novos desafios e às novas tendências.
SS: Até porque quando ele [o modelo 3D da peça] está impresso em 3D não nos dá a informação toda, não é?
JA: Não, … o 3D atualmente, em 80 % dos casos, o 3D [só] dá a geometria nominal, o 3D está aqui [aponta para um desenho 2D em suporte papel]. É que o desenvolvimento do produto industrial não se fica só no modelo nominal, depois é preciso descascar [a peça] seja a 2D, seja a 3D. Mas todas as especificações ‒ chamadas “especificações geométricas do produto” ‒ têm que lá estar. Porque, objetivamente, o desenho é o elemento de comparação para fazer o controlo de qualidade do que se fabricou e ninguém, como eu já disse há bocado, ninguém compara uma peça real com o [seu] modelo ideal; tem que se comparar com o modelo ideal mais as variabilidades que lá têm que estar explícitas. Qualquer um, mesmo com o modelo 3D, como vai ter que definir muitas vezes… Lá está, se o sistema não estiver completamente automatizado, vai ser o Homem que, numa fase do processo, vai definir…, como para o controle ou para a sequência de maquinagem, dos processos de fabrico, etc., vai tomar determinadas decisões. E, no fundo, o que nos tem mantido nesta linha [de ensino/aprendizagem] é perceber que os empregadores apreciam as capacidades dos nossos estudantes neste domínio. Têm uma maior capacidade de adaptação ao sistema industrial, exatamente porque têm essa…
SS: Têm a noção da linguagem, não é? Têm a noção dos códigos, e não é só dos resultados…
JA: Exatamente, não é só a parte ferramental de…
SS: Portanto, o Desenho, para já, continua, não é? [risos]
JA: E continuará sempre…
SS: Isto é linguagem, não é?
JA: …se não for bem assim, é parecido, mas isto [o Desenho] é uma linguagem… esta linguagem gráfica de síntese é fundamental.
SS: Se entendemos que para muitos dos cursos que usavam o Desenho antigamente como base também da sua formação, neste momento, o Desenho está a cair em… não sei se é o Desenho propriamente dito que está a cair em desuso, ou se é uma certa… aceleração dos processos.
JA: É verdade, por exemplo, nos Estados Unidos, onde estes conceitos estão muito desenvolvidos, eles reconhecem que na parte universitária se descuraram. A capacidade interpretativa da informação, mesmo para a construção de modelos 3D, é fundamental.
SS: Está-se a chegar aos resultados, sem dar atenção aos processos e aos caminhos, não é?
JA: Sim, sim, porque, muitas vezes, eles [os estudantes] fazem, mas não sabem o porquê.
SS: …O que é que estão a fazer…
JA: Se tivermos uma formação baseada na “tecnologia da moda”, neste momento, podemos ter de ir aprender tudo outra vez, de perceber o que é que está por trás disso e fazer essa adaptação.