INTERVIEW
Silva, Vitor (2021). “Desenho e a iniciação ao Projecto na FAUP – Entrevista a Rui Américo Cardoso”. Gravação e edição de Patrícia Almeida. Apoio técnico de Maria Catarina Silva. Faculdade de Arquitetura UP.
Vítor Silva (VS): O que é que é essa relação do Desenho com o Projecto? O que é que é isso?
Rui Américo Cardoso (RAC): O Projecto, e o ensino do Projecto se faz com essa multiplicidade de meios de comunicação, mas com a prevalência fortíssima, primordial, do Desenho. O que pode ser o Desenho? Eu diria não o que é o Desenho, mas o que pode ser o Desenho na formação de cada um? Pondo a tónica, naturalmente num curso de Arquitectura, no uso do Desenho para a concepção do espaço. Isto é, nós não estamos no âmbito de um curso de Ciências Exactas, de transmissão de um conhecimento e aplicação de um conhecimento; estamos no âmbito de uma actividade entendida como actividade artística, e, portanto, que requer de cada um essa disponibilidade, esse gozo, esse interesse, essa liberdade, ao mesmo tempo que naturalmente tem aspectos metódicos muito fortes e codificações e modos de representação, claro que tudo isso. Mas é esta oscilação entre o desenho de experimentação, o desenho de descoberta, o desenho de…o gesto; e, a contenção, a verificação, o desenho rigoroso… E isto, não vem uma coisa antes da outra, é tudo muito em simultâneo. Ora, este sentido da descoberta, é que eu acho que é o fundamental. Eu costumo dizer que, neste âmbito, desenhamos porque desconhecemos. É por não sabermos que temos a necessidade de conhecer. Seja no desenho de observação da realidade como há pouco ali referíamos, portanto, no reconhecimento de uma realidade, seja no desenho do Imaginário.
VS: Porque há uma relação entre Desenho e Projecto. O que é que as distingue de facto?
RAC: Eu acho que tendo a não distinguir, ou a não querer distinguir. A propósito do Desenho estou a falar na verdade de modos de ver, de modos de conceber, de modos de lidar com o problema que se tem em mãos e de como esses modos condicionam ou abrem possibilidades ao Projecto. São processos que também facilitam a agilidade mental, o pensamento, a rapidez de conexões, de relações…que, de outro modo, também pelos meios que se usam ou não usam, são condicionados ou potenciados. Portanto, nada disto é indiferente para o resultado que se vai obter. Somos simultaneamente emissores e receptores. Esta noção da relação do corpo, da mente, da mão e de aquilo que impeliu à realização de um determinado desenho, aquilo que nos chega depois do registo a partir da folha, está noutro patamar de informação, de possibilidades, de…
VS: É assim porque tem a ver, de facto, do meu ponto de vista, com o modo como se trabalha as representações e a consciência que se tem das representações. Isto é, por um lado, essa capacidade de representar que é exigida, apesar de tudo, para os processos de concepção.
RAC: Há sistemas de codificação, ou de verificação de medida, de desenho rigoroso, a par deste desenho mais livre…livre, que num sentido não significa menos rigoroso. O importante não é o rigor do traço, é o rigor da abordagem. É aquilo que estamos a querer atingir com o registo que está a ser efectuado. Há não muito tempo, numa conferência, “Mapas e Diálogos da Arquitectura Contemporânea”, convidamos o Arquitecto Álvaro Siza que veio mostrar – o título agora não me recordo porque é muito extenso, mas tinha que ver com o esquisso, o desenho rigoroso, a maquete no início da elaboração de um projecto, qualquer coisa como isto -, o percurso do projecto, os desenhos iniciais, o reconhecimento do sítio, a aproximação, o ver de longe, o ver de perto… E fala da recolha de impressões, o mais importante não é aquele resultado do desenho, foi aquilo que aconteceu nele quando ele fez o desenho; e aquilo que ficou gravado na memória por ter feito justamente aquele desenho na aproximação ao sítio, no reconhecimento do sítio. Nós procuramos, em cada desenho destes, do devir, das hipóteses do vir a ser, a vivência real dos espaços imaginários. Tem que ser com uma carga tal, de como se eu estivesse, de facto, naquele espaço.
VS: O confronto mais duro, digamos assim, no Desenho de Arquitectura, coloca-se, de facto, nas sínteses, exactamente quando se fecha, quando se decide e conclui o projecto. E aí as questões, para mim, basicamente são as da medida, e sabemos que a medida é tudo para o arquitecto, porque a medida é a sensação. Como é que se faz este trabalho? Sabendo eu que ele é complexo.
RAC: Sim, o Projecto é…falaste em problemas…é a procura de resposta a um conjunto de problemas que se vão enunciando. Mas, muitas vezes, ele entra numa complexidade tal, que estamos à procura de soluções para problemas que criámos, e não à procura de não criar os problemas. Claro que é preciso ir formulando hipóteses, ir formulando, portanto, aquilo a que te referias: as sínteses. O processo não é linear, não se faz por etapas: ok, já fiz isto, agora já só me falta fazer aquilo. Estamos sempre com a possibilidade de voltar a formular uma síntese mais integradora por que realizada numa altura em que não tínhamos informação absolutamente decisiva que agora temos, e, portanto, que obriga a reformulações da totalidade. O não ter receio de deixar em aberto, de não dizer “Aquilo já está, aquilo já ficou estabilizado, agora só me falta…”. Não, não, este “só me falta” pode obrigar a recondicionar tudo. E, portanto, é sempre por aproximação, experimentação, verificação, caminhos múltiplos, e retomar outros que afinal… Ora, este sentido da experimentação, a partir do próprio, é determinante no domínio daquilo que tem em mãos para conceber.
VS: É possível fazer projectos de Arquitectura sem Desenho?
RAC: Tal como o Desenho, o Projecto é coisa mental, também pode ser estabelecido com uma grande com uma grande intencionalidade, provavelmente sem Desenho. Mas se calhar isso é muito esporádico ou em poucos autores.
Não somos obviamente contra os meios e as capacidades que nos trazem no processo de concepção e no processo de comunicação e de edição, os meios digitais. Aquilo em que acreditamos é que é um conjunto de ferramentas que lhe permite [ao estudante] uma agilidade e uma capacidade de indagação e de comunicação e de concepção muito forte, saberá melhor usar todos os outros meios de que vai dispôr – e é bom que disponha -, no futuro. Porque estamos ao nível dos princípios, dos fundamentos, da razão de ser das coisas e não do resultado das coisas, não é? E, portanto, estes desenhos têm que ter esse sentido maior que é o da utilidade. Para que é que está a servir? Estou a fazê-lo porquê? Com que sentido? E isso tem que ver com o perspectivar, o antecipar, portanto, é o redesenho daquela realidade – o redesenho, eu costumo falar do redesenho do sítio para criar um lugar -, e não um desenho de um objecto respondendo a um programa.
VS: E toda esta actividade, no fundo física e mental, não é? Se não é só…abrir os processos de imaginação? E, em particular, em Arquitectura, abrir os processos de imaginação espacial?
RAC: Mais do que imagens ou representações, nós criamos ou aproxima-mo-nos de visões…visão no sentido do perspectivar, do antecipar alguma coisa. Também os desenhos geram ou motivam, ou abrem caminho para novas reformulações das ideias e, portanto, isto são tudo menos desenhos circunscritos no tempo, eles têm sentido na continuidade da elaboração do percurso de trabalho que está a ser formulado. Portanto, o que lhes dá sentido é a razão pela qual fomos impelidos a fazer [o desenho], no fundo, é esta relação entre aquilo que desenhamos e aquilo que desperta em nós o que desenhamos.