INTERVIEW
Cardoso, Vasco (2021). “Entre o caderno de campo e o desenho automatizado: o contributo da engenharia cartográfica – Entrevista a José Alberto Gonçalves”. Gravação e edição de Patrícia Almeida. Apoio técnico de Maria Catarina Silva. Departamento de Geociências, Ambiente e Ordenamento do Território da Faculdade de Ciências da UP.
Vasco Cardoso (VC): [Que] dimensões do Desenho contribuem mais para o conhecimento produzido por vós?
José Alberto Gonçalves (JAG): Ora, na representação do território, a produção da cartografia era uma temática tradicionalmente de apresentação na forma analógica com o desenho em papel. Durante muito tempo a cartografia era recolha…havia uma recolha de informação, mas depois uma produção de um documento final que era um desenho. Actualmente a tendência na produção da cartografia, seja ela ao nível da cartografia topográfica tradicional, seja, por exemplo, da cartografia temática – como o caso da cartografia geológica -, passou a ser muito mais baseada num desenho computacional. É claro que o Desenho continua a ter uma grande importância, penso eu que, sobretudo, na forma de recolha de informação e na elaboração de croquis de campo muitas vezes em que, muito mais do que uma recolha simples de uma fotografia, o desenho é uma interpretação do que nós vemos da realidade e que nos permite armazenar informação que muitas vezes nem nos estamos a aperceber de que está ali, mas que é fundamental.
VC: Diferentes modos do Desenho, o desenho manual, o desenho computacional, trabalham colaborativamente?
JAG: Sim, claro que o desenho computacional também tem aqui 2 vertentes. Uma é o desenho em CAD, em que a habilidade do operador é importante, apesar de haver uma ferramenta computacional que nos ajuda, mas há uma habilidade do desenhador de CAD. Há uma outra vertente, que nós usamos muito actualmente, que é o desenho automatizado a partir de uma base de dados em que eu construo uma base de dados num sistema de informação geográfica, e a representação final vai ser feita com um conjunto de regras, a partir dessa base de dados. Claro que aí tem de haver sempre uma intervenção do operador, quer na escolha dos algoritmos que vão ser utilizados para compôr esse desenho automático, quer numa edição final que tem sempre de ser feita.
VC: A construção do algoritmo poderá considerar-se um desenho? Um modo de desenhar? Um instrumento de desenho?
JAG: Poderá ser, poderá ser. Porque, de facto, muitas das coisas que nós queremos transmitir traduzem-se em regras. Há um exemplo típico que é: num modelo tridimensional do terreno que…no qual eu vou simular iluminação, eu poderia pensar que vou simular com base numa posição realista do Sol, mas nunca é isso que se faz, põe-se sempre o Sol numa posição onde ele aqui, nunca está, que é a posição de nordeste a 45°. Porquê? Por que nos dá uma melhor interpretação para a nossa percepção visual da tridimensionalidade do terreno, portanto, a escolha do algoritmo é feita em função da capacidade de transmitir-mos informação com aquilo que estamos a representar graficamente.
VC: Haverá um trabalho de campo que colabora com o trabalho de gabinete, e haverá ou não um vai e vem entre o terreno e o gabinete?
JAG: A parte do Desenho, da capacidade de interpretação da realidade e de a transpor para uma representação gráfica, tem sempre de ter esse cuidado. Quando nós desenhamos uma cartografia, desenhamo-la a maior parte das vezes actualmente, em gabinete, a partir de fotografia aérea. Portanto, a nossa forma de recolha de informação é, maioritariamente, a fotografia, na qual recolhemos uma imagem que depois processamos em gabinete. Mas há sempre, especialmente nas escalas de muito pormenor, muita informação que não está presente, portanto vamos criar num CAD, por exemplo, um desenho com aquilo que observamos da fotografia. Falta muita coisa, portanto, esse desenho vai ser impresso e é um meio intermédio que um topógrafo [que] vai ao campo recolher a informação que falta [utiliza], e observa aquela minuta, digamos que, um desenho intermédio computacional, no qual vai complementar tudo aquilo que observa depois no terreno. Portanto, acho que sim, acho que esse diálogo é permanente.
VC: Poderá a visita ao campo levar à inclusão de novos pontos?
JAG: Sim, sim. A identificação depois que houve uma falta de informação e o completar desse desenho numa nova observação de campo. Claro que sim, naturalmente. Claro que isso tudo interage sempre com novas tecnologias, provavelmente eu quando vou visitar uma zona que não observei bem talvez leve o GPS para me ajudar a chegar ao sítio, mas aquele elemento de papel onde eu registo aquilo que observo é sempre fundamental.
VC: O desenho pode servir como ferramenta de seleção das entidades que queremos enfatizar, não é?
JAG: Sim, sim. Muitas vezes o operador que vê a fotografia e que interpreta uma coisa, e desenha uma coisa, mas a pessoa que vai ao campo redesenha e reconstrói aquela observação porque houve uma má interpretação, portanto, a observação direta e o desenho daquilo que a pessoa interpreta no terreno é que é o fundamental para chegar a uma versão válida, especialmente na questão da classificação dos objetos que encontramos. Claro que a fotografia digital trouxe para quem faz atividade de campo um ganho muito grande. O próprio geólogo, muitas vezes, para além de desenhar aquilo que vê, fotografa, se calhar com um telemóvel, aquilo que vê. Mas a capacidade de observação e de transpôr a interpretação que faz para o papel não perde o seu campo.
VC: O desenho clarifica.
JAG: O desenho clarifica, claramente, sim.
VC: Haverá peças gráficas testemunho dessas viagens, dessas colaborações?
JAG: Sim, no caso dos meus colegas geólogos, todos eles têm um caderninho de campo que guardam religiosamente ao longo de toda uma carreira, e que documentam localizações e observações cuidadas para, de facto, ter todo esse registo e poder revisitar informação mais antiga e aproveitá-la.
VC: Qualquer um faz um desenho de Geologia? Se calhar não, não é?
JAG: Não, não. A cartografia temática pressupõe sempre um conhecimento prévio daquilo que estamos a estudar. Quer no caso da Geologia, quer no caso, das florestas, um não-especialista não conhecerá naturalmente. No caso da cartografia topográfica, em que estamos a recolher informação generalista, já não será tanto assim, e mais pessoas poderão facilmente identificar aquilo que observam no território.
VC: Que é aquela questão do desenho mecânico estar a ser vendido, ou aliás contratado, ao exterior?
JAG: Há uma fotografia, que é uma fotografia aérea, na qual alguém vai desenhar uma primeira versão de uma cartografia. O que se tem observado é que a mão-de-obra nos países europeus é cara e esse trabalho é algo repetitivo, não é muito criativo, é um trabalho que poderá vir a ser eventualmente resolvido por ferramentas de inteligência artificial, mas neste momento o operador humano faz isso melhor. Mas como a questão da mão-de-obra tem o seu peso, o que se tem observado é que é um trabalho que se deslocaliza para países de mão-de-obra mais barata. Há empresas, por exemplo, na Índia, que fazem esse trabalho. Claro que aqui o que é que nós temos que fazer? É a verificação, a validação e o reinterpretar dessa informação, algo em bruto, e redesenhar para aquilo que são os nossos critérios do que esperamos que os nossos mapas tenham.
Um mapa gerado automaticamente não é necessariamente um mapa que nós queremos ver e, muitas vezes, nós vemos isso quando vamos com o nosso telemóvel, por exemplo, com o GoogleMaps no terreno. Eu não vejo, por exemplo, as mesmas localidades que esperava encontrar no mapa, porquê? Porque é um mapa feito automaticamente e que não têm os critérios que o operador teria para dizer: “Olha esta localidade é mais importante, esta estrada…, este objecto…, esta albufeira…, este rio…” E é uma seleção automática em tempo real [que] não satisfaz ainda, acho eu, a necessidade que a pessoa tem de perceber o território. Claro que todos gostamos de navegar com o GPS e chegar aos sítios, mas começamos a perder a capacidade de perceber o espaço, perceber a geometria das coisas, as relações espaciais, o que está longe, o que está perto. E este treino de percepção espacial é importante que o continuemos a ter, portanto, a capacidade de um operador interpretar as coisas acho que continua a ser fundamental.