INTERVIEW
Bismarck, Mário (2021). “Desenhar o infinitamente pequeno – o desenho em microbiologia”.
Entrevista a Carlos Azevedo – Laboratório de Biologia Celular, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.
Mário Bismarck (MB):
Essencialmente, porque é que usa o Desenho? E para que é que usa o Desenho? Primeiro, dentro do seu longo percurso de experiência de vida, como é que aprendeu este tipo de técnica de representação, este modo muito específico de ilustrar ciência?
Carlos Azevedo (CA): Bom, eu comecei muito novo a desenhar, quando era estudante. Gostava de fazer desenhos-esquemas. Não sou grande desenhador, mas fui-me habituando a fazer aquilo que pretendia depois de uma observação, talvez influência de um professor que tive que mostrava muito ao microscópio e depois dizia: “Façam o desenho”, e eu fazia sempre uns desenhos muito minuciosos e às vezes até punha coisas que eu não via, que o professor dizia assim: “Olha lá, mas tu pões isto aqui assim…mas tu não estás a ver”, “Não estou a ver, mas deve estar aí qualquer coisa assim-assim-assim”. Idealizava. Logo fui-me aperfeiçoando. Não havia muita documentação didática e nós tínhamos que arranjar os nossos próprios apontamentos e então eu fazia desenhos e esquemas do que observávamos nas aulas práticas, na maior parte das disciplinas sempre à base da microscopia. Isto é, na altura com a microscopia óptica, em que os aumentos são relativamente pequenos contrariamente ao que sucede hoje, em que os aumentos são muitíssimo maiores. De modo que, este aspecto didático tem uma importância grande não só para o professor, mas também para os alunos.
MB: Não posso deixar de fazer esta pergunta: como estamos no tempo das chamadas novas tecnologias, de que modo é que o Desenho ainda assim tem alguma coisa a mostrar, ou alguma competência que o valorize em relação, por exemplo, à Fotografia ou a outros processos de reprodução?
CA: Como numa fotografia que se faça não se consegue ver exactamente qual é a morfologia total da célula, nós usamos muito o esquema. Como? A partir de fotografias de cortes seriados. Com os cortes seriados podemos ter uma ideia exacta do volume da célula e das formas correspondentes às várias secções, e idealizar a forma morfológica que a célula tem.
MB: Portanto, de alguma maneira, estes desenhos acentuam essa observação, essa morfologia, esse lado visual de qualquer coisa que está perfeitamente escondido no interior de tudo.
CA: Porque, como disse, as células são muito irregulares. Há células de todo o tamanho e feitio, desde uma célula esférica a células altamente alongadas: há de tudo. De modo que, nem sempre é possível em microscopia observarmos uma célula desde a cabeça até aos pés. Por exemplo, pegando neste desenho que está aqui [segura desenho]: eu nunca consegui obter uma imagem deste tipo, mas esta célula que está aqui é real.
MB: Que é uma coisa curiosa porque, no fundo, esta imagem é uma reconstrução a partir dos diferentes fragmentos vai… Um bocadinho como se fosse um puzzle, vai construindo a identidade desta morfologia.
CA: E é por isso que, por exemplo, no caso da Microparasitologia, as revistas científicas exigem que, além do aspecto fotográfico que se apresente, se faça um esquema elucidativo daquilo que se mostra. Porquê? Por que a maior parte das fotografias que se obtêm não mostram exactamente a morfologia da célula, porque não se vai encher um artigo, com 20 ou 30 fotografias quando no fundo se pode arranjar meia dúzia delas. E cada vez mais, eles são muito exigentes no número de fotografias, não querem muitas fotografias, querem aquelas que sejam sugestivas. Pode haver a sorte (e é uma questão de sorte, e de insistência também) de, num corte, apanhar uma imagem perfeita, exactamente com a morfologia que tem. Mas podemos estar ali meses e meses, sem a encontramos, e, portanto, fica um trabalho deficiente… Nós só com isso não conseguimos fazer uma fotografia, temos que ter cortes muito seriados para fazer um juntar de pequenos aspectos para tirar a morfologia total da célula.
Estas células que estão aqui [aponta para desenho] são as que vão dar esta coisinha por aqui abaixo [percorre zona de outro desenho], aqui a tampa [junta as mãos em concha] e depois a cauda.
MB: Portanto isto [aponta para desenho] é outra vez um processo de crescimento.
CA: É o processo de crescimento. Isto [aponta para desenho de um corte de um ovário de peixe vivíparo, mostrando os óvulos] é um outro, isto é a evolução que isto sofre, isto é…
MB: Ovogénese [segura desenho do ciclo celular da ovogénese onde se lê a legenda “Ovogenese”]
CA: É isto que está aqui [aponta para o mesmo desenho de um corte de um ovário de peixe vivíparo], dos ovos aos sítios pequeninos que estão aqui, a estes grandes que estão aqui.
MB: Em relação a estas imagens que aqui estão, há esta aqui que eu acho com alguma curiosidade por ser a única daquilo a que nós chamamos um esboço, um desenho preparatório. O professor já me disse que os rasgou todos, e eu percebo perfeitamente isso.
CA: Rasguei, porque já está feito, acabou.
MB: Já está feito, aquilo é, por assim dizer, trabalho auxiliar. Mas este, por exemplo, para nós que somos da área [do Desenho], ajuda-nos a perceber como é que vai pensando a própria resolução [gráfica] porque há aqui questões, que nestas ilustrações são bem claras, que é a questão, por exemplo, da proporção e da medida.
CA: Bom, pois, isso é importante. Eu faço isto, e tenho que fazer isto sempre com as medidas relativas. Vou à fotografia, meço a parte, digamos, da cabeça, da cauda, da parte da largura, da parte da espessura… E depois vou marcando aqui, fazendo tudo com o mesmo tamanho, porque não podia depois ir comparar com uma fotografia e ver “Ah! A cauda não está proporcionada ao comprimento da cabeça!”. Não, tem que estar rigoroso, tem que ser rigoroso. De modo que, primeiro: este [aponta para desenho que está por baixo de um outro em papel vegetal] é um auxiliar, e quando ele está mais ou menos completo, agora vamos passar a limpo e fazemos este documento [aponta para desenho em papel vegetal]. Isto em todos eles.
MB: Exacto. Neste caso, por exemplo, a coisa que é resolvida aqui [aponta para desenho que está por baixo] é, por assim dizer, a definição dos contornos, não é? Da sua fronteira, dos limites das formas, etc. E depois aqui [aponta para desenho em papel vegetal por cima do anterior] começa a trabalhar de alguma maneira esse interior.
CA: Perguntam-me às vezes, quanto tempo eu demoro a fazer Não lhe posso dizer quanto tempo demoro porque eu faço isto aos bocadinhos. Um desenho destes pode demorar, sei lá, 4 ou 5 horas a fazer, mas eu nunca estou 4 ou 5 horas seguidas. Faço um bocado, tenho por baixo o esquema, não tenho problema nenhum, no outro dia vou fazer mais pontinhos…e os pontinhos, já tive a curiosidade uma vez de contar e dá cerca dos 400 000.
MB: 400 mil?
CA: Sim. Faço uma medida de 1cm2, e depois calculo a superfície toda e faço uma média. Claro, nos mais complexos, não é?
MB: Uma coisa que falamos há bocadinho também, tem a ver com o tal livro de Biologia Celular e Molecular que, de alguma maneira, este tipo de imagens são…
CA: São para um livro que vou fazer. Nós, eu e um colega aqui da universidade, o professor Claúdio Sunckel. Eu convidei-o para ele fazer parte como co-autor da quinta edição e nós estamos agora a pensar fazer a sexta edição do livro de Biologia Celular. Há uma falta grande de documentação como se fosse um atlas porque a microscopia electrónica deu um grande avanço ao estudo da célula. Hoje já se encontram estruturas muito pequeninas que são os RNA’s micro, são muito mais pequenos. Enquanto que, os que nós já conhecíamos, tinham este comprimento [braços abertos a uma distância de aproximadamente 1,30m], passamos agora a estudar e a encontrar coisinhas deste comprimento [dedos indicadores a indicar uma distância de cerca de 10cm]. E porquê? O avanço da tecnologia! O que há 10 anos não havia, agora já se encontra com facilidade e se estuda.
MB: Para mim é extremamente claro o modo como isto torna visível conhecimento. E acho que a ideia pedagógica destas ilustrações é tornar exactamente as coisas mais nítidas para os estudantes.
CA: E também de mais fácil compreensão. É um instrumento didático muito, muito importante.