INTERVIEW
Bismarck, Mário (2021). “Palavras, Números e Imagens – Desenho em bioquímica”.Entrevista a Luís Belchior Santos, Departamento de Química e Bioquímica, Faculdade de Ciências da UP.
Mário Bismarck (MB):
Em que contextos é que tu utilizas este tipo de linguagem – chamemos-lhe assim – que é o Desenho?
Luís Belchior Santos (LBS): Usa-se o Desenho para quê? Para explicar algo, para transmitir algo. Acho que é a utilização mais comum do Desenho, pelo menos para mim. Eu não uso o Desenho como uma forma de expressão artística, uso o Desenho como uma forma de explicar algo a alguém, para fazer um mapa da nossa ideia, da nossa linha de pensamento. Mas o desenho tem que ser organizado, o desenho não pode ser aleatório, o desenho tem de ser suficientemente simples, não pode ser complexo, não pode ter complexidade; tem que ser descritivo, mesmo que seja completamente abstracto, do ponto de vista de descrição de um objecto. E eu usei isso, comecei a usar isso de uma forma cada vez mais sofisticada, de maneira que o Desenho para mim é essencial na minha forma de comunicação.
MB: Posso dizer que há dentro da palavra desenho inúmeras categorias que nós podemos encontrar, uma delas é a ideia do esquema. Aqui já não é o desenho a comunicar, mas, de alguma maneira, és tu a tentares que o desenho te clarifique o teu próprio pensamento. Visualizas uma nova ideia mas visualizas também a reflexão da nova ideia. Há aqui uma outra mais-valia, que já não é de uma comunicação para outros, mas é quase de uma auto-comunicação, ou de uma auto-clarificação.
LBS: O Desenho, de facto, pode ser usado – e eu uso o Desenho – para organizar as ideias, para mapear um sistema, um projecto, uma estrutura. Os engenheiros e os arquitectos também usam isso, não é? Nos projectos que fazem, nas simulações que fazem com os desenhos. Isso é o desenho que me ajuda na construção de um conceito, um desenho conceptual num projecto. Quando eu chego à fase de ter uma ideia e conseguir desenhá-la parece que há uma descarga! Ou seja, eu consigo desenhar e vejo assim: “isto bate certo! é assim, vai por ali!” Outras vezes, ao fazer o desenho, vejo que afinal me surge ali um problema, por exemplo, a montagem de um determinado sistema (a montagem e a desmontagem, a visualização faz-se muito mais facilmente no desenho do que mentalmente). Esse tipo de desenho é um dos desenhos que eu identifico. Não é comunicativo, é um desenho que ajuda na reflexão, que por vezes é um desenho construtivo, ou seja, estamos a construí-lo: estamos a construir uma ideia.
MB: Isso quer dizer que o desenho não está pré-concebido, não está, à partida, determinado. À medida que vais fazendo o desenho, vais encontrando o desenho. Ou vais encontrando a própria figuração daquilo que queres.
LBS: A primeira vez que eu faço um desenho nunca tenho essa concepção feita. Possivelmente outros tipos de pessoas que pensam e usam muito o desenho (um artista, por exemplo) fazem isso: imaginam o desenho completamente… Não sei se é isso, eu não faço esse tipo de desenhos. Mas o Desenho, para mim, é sempre feito a partir da parte do desenho que está anteriormente feita, ou seja, eu desenho uma parte e a seguir vou construir aquilo dali, faço linhas de ligação, faço encaixes do desenho. É uma afinação progressiva.
MB: De alguma maneira, é uma espécie de um desenho desenvolve e gera outros desenhos.
LBS: Exactamente.
MB: Há uma frase do Picasso que diz assim: “Se queres saber como vai ser o teu desenho tens que começar por o fazer.” É o mesmo processo, é a mesma coisa, ou seja, o desenho não está perfeitamente clarificado na mente mas serve para, desenhando, ir clarificando. e isto leva-me também para uma questão, que é uma questão fulcral nesta utilização do desenho, que é tentar saber se o Desenho é uma forma de “ver” o pensamento.
LBS: Pois, isso é outra vertente do Desenho que nós em Ciência usamos muito (e eu uso à minha maneira). Nós, muitas vezes, usamos o Desenho como forma de transmitir uma imagem que, de facto, não existe fisicamente. Aquela imagem que, por exemplo, um engenheiro tem, de olhar para uma ponte e ver uma ponte, não é? Estuda a ponte. Nós não temos esse privilégio de ver os átomos e as moléculas com os nossos olhos, temos que os ver indirectamente a partir das propriedades, dos espectros, das informações que temos nas medições. Mas depois temos toda a explicação, todo o modelo, que são modelos complexos, e que nós temos que os conseguir, de alguma forma, visualizar. E como é que um físico ou um químico visualiza esse género de modelos? Muitas vezes é com figuras, com esboços que, de certa forma, mimetizam o modelo que nós estamos a usar. E isso é tudo um código. Um código de desenho.
MB: Durante as tuas aulas, quando tu usas esse lado pedagógico mas também performativo de desenhar e explicar desenhando, de fixar no quadro da sala de aula, uma espécie de narrativa, onde vão surgindo a visualização da complexidade das coisas, das matérias, das interligações, etc., qual é a reacção dos alunos?
LBS: Ora bem, relativamente à reacção dos alunos, eu acho que numa primeira fase, os alunos ficam indiferentes. Passado uma ou duas aulas que eu tenha com eles e que faça isto de uma forma quase repetitiva, eu acho que os alunos adoram. Cada vez que eu faço isso eles parece que acordam! Sinto isso, sinto esse despertar. Aqui o Desenho também funciona como esse despertar.
Depois, quanto a mim (e eu tenho essa experiência), há um outro aspecto que o desenho tem na transmissão de informação, na comparação com uma aula de slides, é que essa parte constructiva do aparecimento do desenho à frente dos alunos acompanhado em perfeita sincronia com o tempo, com o discurso verbal, tem um timing, uma temporização que é muito mais adequada ao tempo de percepção e de reflexão do aluno sobre a matéria. O esforço deles para acompanharem é extremamente importante, porque eles, ao fim ao cabo, estão a tentar perceber se conseguem, eles próprios, desenhar a mesma informação; se conseguem fazer a mesma interpretação, nem que seja copiar (mas ao copiar um desenho, já não vão conseguir copiar exactamente igual). Tentam pôr os dados todos sem perder um ponto daquilo que está escrito no quadro, e tentam perceber onde é que as linhas se ligam e porquê. E Isso é uma das partes importantes da educação, que é a estratégia educativa que eu uso (e muitas pessoas usam), que tem a ver com implicar os alunos ao envolvimento, não só à curiosidade, mas ao envolvimento. E depois, se as pessoas meterem as mãos naquilo, a seguir passam à reflexão e é aí que o conhecimento fica consolidado. Tem que se estar constantemente a perguntar, a questionar sobre as coisas, a dizer: “Mas esperem aí, mas acham que isto é assim?”; “Quem é que sabe isto?”, “Quem é que…?”, “Eu vou tentar…”, “Qual é a vossa explicação para este fenómeno?”, “Como é que isto acontece?”, ou “Por que é que isto é assim?”, “Por que é que não é assim?”. E depois tentar dar uma resposta com um desenho. E então dar respostas com desenhos é uma coisa fascinante! Dar respostas a perguntas que os alunos fazem com desenhos. Os alunos fazem-me uma pergunta e eu respondo com um desenho. E eu acho que essas respostas com os desenhos são as minhas melhores respostas, eu uso muito isso: o desenho nas aulas, nas orientações, nas explicações, nas reflexões, nas discussões, nas argumentações, nos pensamentos…
MB: Só para terminar, é o Desenho substituível?
LBS: É insubstituível no sentido em que não há nada que substitua exactamente o Desenho. Ou seja, se eu quiser, eu posso dizer que o Desenho não é essencial à comunicação, pois podemos comunicar de outra maneira, arranjando outras formas de comunicação. Mas eu não conheço nada que substitua o Desenho. A não ser que seja desenhar num computador, mas é Desenho na mesma, não é? Mas especialmente o “desenho constructivo”, o desenho que é feito à frente de alguém, o desenho em que, quando nós estamos a desenhar, quem está a receber a mensagem está a ver-nos fazer o desenho, é insubstituível porque existe uma dinâmica, existe uma sequenciação, existem caminhos que se podem alterar. Nós temos o Desenho ligado ao nosso cérebro na maneira como estamos a fazer a comunicação. Estamos a comunicar como estamos a falar. Da mesma maneira como estamos a falar e as palavras saem-nos, com o desenho é igual. Não podemos fazer uma coisa dessas num computador, à partida. É o que eu vejo como gigante deficiência, por exemplo, nas aulas que dou com slides (com um alinhamento estabelecido à partida) é que o slide que vem a seguir não é, se calhar, o slide que eu queria ter a seguir. E se estiver a trabalhar com o Desenho, eu mudo o desenho. E essa é a grande virtude, é que o Desenho está directamente ligado ao nosso cérebro, quando o estamos a fazer.
Eu cada vez desenho mais, é isso que eu posso dizer.
Revisto 26/04/2022