INTERVIEW
Cardoso, Vasco (2021). “Desenho manual e esquisso como ferramenta de compreensão e ilustração em Arqueologia – Entrevista a Maria de Jesus Sanches”. Gravação e edição de Patrícia Almeida. Apoio técnico de Maria Catarina Silva. Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da UP.
Vasco Cardoso (VC): Desenho na Arqueologia, Desenho e Arqueologia…
Maria de Jesus Sanches (MJS): Não é possível ser-se arqueólogo sem se aprender a desenhar. O Desenho é, em si, uma forma de descoberta nas suas mais diversas vertentes. Quando nós vamos desenhar, os nossos – chamemos-lhe assim – edifícios, particularmente nas escavações, os nossos edifícios estão em ruínas, isto é, os diferentes planos que nós temos são ruínas, portanto, nós lidamos sobretudo, com a falta, há uma ausência ali. Não há só uma ausência das pessoas do Passado, há também uma ausência de completude. Portanto, essa desorganização, quando registada no Desenho, é muito mais evidente do que quando é olhada a olho nu. No campo, normalmente, o desenho, embora possa ser feito por técnicos muito experimentados a desenhar, é sempre revisto permanentemente pelo arqueólogo, porque precisa dessa tal compreensão e interpretação. A arqueologia no campo trabalha com sedimentólogos, geomorfólogos, etc., e a representação final, digamos, já não é uma representação empírica somente da Fotografia, é uma compreensão. E nós, no Desenho, incorporamos outros sentidos, a visualidade, o tacto, porque nós apalpamos as camadas ou até desenhamos as pedras de acordo muitas vezes com o tacto, porque isto corresponde até a escolhas do Passado. É evidente que eu também uso as novas tecnologias, a fotografia vertical, a alteração da fotografia por computador e tudo isso. Mas, nada disto substitui – digamos assim – o registo do desenho. E não substitui porquê? Porque há um lado empírico do desenvolvimento da Ciência que está plasmado no registo. Este empirismo é muito mais palpável quando se desenha.
VC: O Desenho clarifica.
MJS: E clarifica, clarifica para nós e para demonstrar. Nós trabalhamos segundo este nosso sistema que é o Cartesiano e, digamos, em diferentes escalas o nosso sistema é o sistema dos mapas. Desde uma escala mais próxima a uma escala mais distante, escolhendo os objectos de registo, é como um sistema cartográfico. Mesmo um desenho no campo, é um desenho orientado como um mapa.
VC: Não sei se quererá falar dessa escala dos objectos…
MJS: Nós quando fazemos o desenho das peças, aquilo que é mais difícil de desenhar e que os estudantes por exemplo nos pedem “ensine-me a desenhar” – estão sempre a dizer “ensine-me a desenhar” -, é o material lítico, é o material talhado, porque quem não sabe talhar minimamente, não sabe reconhecer a incidência do gesto. O que é registado aqui, com uma técnica muito particular, é o talhe em si, o retoque, portanto, no fundo, é o gesto técnico e até a sobreposição do gesto técnico, lá está: a compreensão. Se olharmos para a peça…se uma pessoa olhar para a peça não consegue ver tudo isto duma só vez, e num desenho vê, portanto, o Desenho mostra o que a peça a olho nu não mostra. É preciso até uma grande experiência de observação para fazer o desenho. No material lítico, não é possível desenhá-lo não sendo um bom técnico – chamemos-lhe assim também – de reconhecimento das técnicas de talhe e das cadeias operatórias.
Na cerâmica já não é bem a mesma coisa, uma cerâmica é desenhada de acordo com a sua visualidade, o desenho transmite melhor a alteração fisiográfica das coisas. Este lado demonstrativo, didático…por um lado, demonstrativo para a compreensão, e este lado didático está sempre presente no Desenho de Arqueologia.
VC: Perguntava agora [pel]o lado especulativo do Desenho em Arqueologia? Lembrava-me de uns desenhos que me mostrou há pouco de umas perspectivas tomadas em campo, sobre alguns castros… Penso que também na Cerâmica, muitas vezes, usam o Desenho com esse poder especulativo do que poderia ter sido cada uma dessas peças.
MJS: Por um lado, na cerâmica – como falou dessa especulação, nesse salto -, nós temos fragmentos, não temos o vaso completo, nós conseguimos é saber a partir da forma, e se temos o fundo e o diâmetro, qual será a reconstituição formal. Isto é uma ferramenta fundamental para a investigação em Arqueologia…perceber qual é a ideia mental. O modelo até cultural daquelas pessoas relativamente à cerâmica… Porque a cerâmica é um objeto, ao contrário dos líticos, é muito plástica, e, portanto, completar a peça, a forma da peça, é muito importante. Porque não é só para mostrar aqui, é para nós entendermos, nós próprios.
Relativamente aos sítios, há vestígios em determinados locais e há topografias. Com base na documentação existente, e na topografia, nas construções, fazemos, digamos, desenhos livres, desenhos mais-ou-menos livres, ilustrativos de como poderiam ter sido os sítios ao longo do tempo. Portanto, não há uma prisão ao restauro, não temos que restaurar nada, em 3D não podíamos fazê-lo, porque o 3D exige medidas muito concretas, e estas imagens fazem-nos imaginar o resto. Nós damos suficiente informação para depois se imaginar o resto, mas, no fundo, são quadros. É o quadro de como foi. É como estar a pintar uma paisagem, não podemos dizer que são desenhos científicos porque eles não respeitam o rigor exacto do que se teria passado no Passado. Mas…digamos, também não deixam de o ser, porque é a percepção que nós temos hoje de como as coisas poderiam ter sido. Fiquei muito surpreendida quando vi nestes fóruns internacionais, as pessoas a reagirem muito bem a este tipo de – chamemos-lhe – ilustração e demonstração, complementada com outra, evidentemente. De forma que pediram este tipo de desenhos para as publicações científicas. Neste momento, existem publicações científicas com este tipo de desenhos, há outros até que representam as pessoas nas suas diversas atividades. Isto também faz parte neste momento do Desenho em Arqueologia. Do desenho manual, eu aqui só estou a falar do desenho manual em Arqueologia, portanto, [refiro-me] à forma como esta técnica ainda é utilizada. No Passado era muito mais exclusiva, agora é complementada, mas continua a ter o seu lugar.
VC: Parece-me que a palavra boa foi essa, é complementada, não é complementar.
MJS: É complementada.